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Micotoxinas desafiam consumo e produção de trigo no Brasil

Redação

As micotoxinas são substâncias tóxicas produzidas por algumas espécies de fungos que, muitas vezes, se desenvolvem em produtos agrícolas como cereais e frutas. Resistentes à industrialização, as micotoxinas continuam presentes nos alimentos mesmo após cozimento ou processamento, sem alterar a aparência ou o sabor. Contudo, a ingestão de alimentos contaminados por micotoxinas pode causar intoxicação, mesmo quando em concentrações muito baixas. Os principais impactos à saúde humana e animal são danos aos rins e ao fígado, além de doenças crônicas como o câncer. Efeitos agudos de gastroenterites podem ser rapidamente identificados, contudo os efeitos crônicos resultam de ingestão moderada e ao longo do tempo, dificultando o reconhecimento da associação entre a toxina e as doenças.

Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), aproximadamente 25% dos alimentos produzidos no mundo estão contaminados com micotoxinas, gerando perdas anuais de um bilhão de dólares. Os impactos econômicos podem resultar em perdas entre 50 a 100%, do valor comercial dos grãos, na redução da eficiência produtiva em animais, além de custos com monitoramento e controle para evitar a mistura de lotes contaminados com grãos sadios.

Na área animal, o problema com as micotoxinas é conhecido como “vomitoxina”, devido a ocorrência de vômito em animais ao ingerir o alimento contaminado. Um dos principais produtos contaminados com micotoxinas é a ração animal, cujos efeitos têm sido observados principalmente em suínos e aves, por apresentarem maior sensibilidade à presença de micotoxinas no organismo e pelo modelo de produção atual, onde a dieta destes animais é basicamente de ração durante todo o ciclo de vida.

 um levantamento da Embrapa mostrou que muitos alimentos a base de cereais estão contaminados por micotoxinas

As consequências do acúmulo crônico nos órgãos dos animais é objeto de estudo do pesquisador Carlos Malmmann, do Laboratório de Análises de Micotoxinas da UFSM, que fica em Santa Maria, RS. “Os impactos econômicos são expressivos, com alteração visível no crescimento dos animais. A micotoxina afeta diretamente a imunidade, assim, o animal fica tentando se defender da contaminação e não tem energia para crescer”, explica Mallmann, lembrando que as micotoxinas não contaminam a carne produzida, mas podem aparecer nos ovos e no leite.

Micotoxinas em trigo

A ocorrência de chuvas na primavera está diretamente relacionada à incidência de giberela no trigo na Região Sul, que responde por 90% da produção nacional. A doença, causada pelo fungo Gibberella zeae (Fusarium graminearum), é frequente em anos em que a chuva e a umidade coincidem com o período de florescimento/espigamento do trigo. Durante a infecção do fungo nas espigas é liberada uma toxina na planta, gerando grãos mal-formados e contaminados.

A pesquisa registra três micotoxinas presentes no trigo: deoxinivalenol (DON) e zearalenona (ZEA) – relacionadas à incidência de fungos do complexo Fusarium graminearum – e a ocratoxina A – produzida pelos fungos Penicillium verrucosum e Aspergillus ochraceus durante a armazenagem.

No trigo, a principal forma de contaminação é a micotoxina Desoxinivalenol (DON), devido a frequência das epidemias de giberela nas lavouras de cereais de inverno no Sul do Brasil.

Análises com alimentos contaminados mostraram que a DON resiste aos processos industriais utilizados na fabricação de biscoitos, barra de cereais e panificados. Em laboratório, a micotoxina só foi eliminada em temperaturas superiores a 270ºC, o que prejudica grande parte dos atributos dos alimentos.

Legislação

Para proteger a saúde humana e animal dos efeitos tóxicos das micotoxinas, bem como defender interesses econômicos, muitos países estabelecem níveis máximos permitidos para estes contaminantes.

Atualmente, na maior parte dos países, o valor para consumo de farinha branca contendo DON é de 1.000 ppb (parte por bilhão), como é o caso dos Estados Unidos, Canadá e a maioria dos países da União Europeia, bem como os países que adotam o CODEX Alimentarius – Programa Conjunto de Padrões Alimentares da FAO do qual fazem parte 188 países, inclusive o Brasil.

A definição dos Limites Máximos Tolerados (LMT) de cada micotoxina em um país é baseada em pesquisas científicas sobre os efeitos dessa toxina para a saúde humana e animal (estratificando os diferentes tipos de animais, frangos, porcos, bovinos, equinos), relacionando com o consumo per capita da população, estabelecendo parâmetros considerados seguros para a ingestão dos alimentos.

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) exige a análise laboratorial de grãos e produtos à base de trigo, como farinha, farelo, alimentos infantis, pães, massas e biscoitos. Uma resolução de 2011 estabeleceu a redução gradativa nos limites de micotoxinas até o ano de 2016, mas a normativa somente entrou em vigor em janeiro deste ano (2019) devido à solicitação de prorrogação dos prazos pelo setor produtivo. Assim, foram determinados os novos limites de DON nos grãos de trigo para processamento (3.000 ppb), na farinha branca (750 ppb) e na farinha integral (1000 ppb). Importante observar que o trigo não é o único problema, outros cultivos como milho e amendoim tem outras micotoxinas e outros níveis de contaminação a serem respeitados.

Veja abaixo como ficaram os limites para micotoxinas presentes nos alimentos e subprodutos do trigo:

Contaminação

No período de 2009 a 2017, foram avaliadas 1.000 amostras comerciais de trigo nos laboratórios da Embrapa Trigo, em Passo Fundo, RS. No total, 64% das amostras apresentaram níveis de DON abaixo de 1000 ppb, atendendo a legislação atual.

Uma segunda análise, realizada nos mesmo período, mostrou que na farinha de trigo, em 58 amostras, 91,4% estavam contaminadas por DON em níveis entre 200 e 1.310 ppb.

Nos biscoitos, em 36 amostras, mais de 97% estavam contaminadas com níveis de DON entre 200 e 1.720 ppb. Ainda, 23 amostras de biscoito cracker, produzidos no Sul do Brasil, mostrou que 22% estavam com limites de DON acima da legislação. No macarrão instantâneo, em 40 amostras, 97,5% foram positivas para DON, com níveis entre 200 e 1.609 ppb.

As micotoxinas têm sido tema de debate nos principais países produtores e consumidores de trigo em todo o mundo. O problema está mobilizando o setor produtivo em busca de soluções. Em 2018 a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo) e a Embrapa lançaram a cartilha “Micotoxinas no Trigo”, com orientações ao setor produtivo sobre legislação e boas práticas agrícolas. Em junho de 2019, a Câmara Setorial do Trigo do Rio Grande do Sul emitiu uma nota técnica orientando para boas práticas voltadas à redução de micotoxinas no trigo, tanto durante o manejo da cultura no campo, quanto durante o beneficiamento de grãos na pós-colheita.

Pesquisa e Inovação

Pesquisadores brasileiros têm trabalhado em parceria com os principais centros de pesquisa internacional para vencer a giberela. Como o controle químico nem sempre apresenta resultados satisfatórios, a melhor solução seria o desenvolvimento de cultivares resistentes a doença.

De acordo com o pesquisador da Biotrigo Paulo Kuhnem, os trigos desenvolvidos no sul do Brasil são considerados como fontes de resistência a doenças fúngicas mundo afora, principalmente devido à exposição dos experimentos ao clima adverso. “Nossos materiais estão sendo submetidos à introdução dos genes das fontes de resistência à giberela internacionalmente mais conhecidas, mas o resultado ainda são cultivares agronomicamente muito inferiores aos padrões exigidos atualmente pelos produtores e indústria”, explica Paulo.

De acordo com o pesquisador, o gene Fhb1, presente na variedade de trigo Sumai#3, com origem na China, é atualmente a principal fonte de resistência para giberela. O gene Fhb1 decodifica uma proteína com propriedades antifúngicas que inibem o crescimento de fungos e tem sido utilizado em muitos programas de melhoramento genético no mundo.

Entretanto, na condição de clima subtropical do sul do Brasil, a introdução do gene Fhb1 resultou em plantas mais altas, com pouco perfilhamento e, consequentemente, menor rendimento. Além disso, as plantas se mostraram muito suscetíveis a manchas e ao oídio. Ainda, o trigo resultou em fatores indesejados na qualidade industrial, como farinha mais escura e menor força de glúten. “São mais de 30 genes envolvidos na infecção da planta por Fusarium. Alguns atuam na entrada do fungo na espiga, outros na dispersão da doença e os demais na produção da micotoxina. É um trabalho complexo, um verdadeiro quebra-cabeças para a pesquisa resolver”, esclarece Paulo Kuhnem e alerta: “não podemos ficar esperando pela resistência genética. Isso só será atingido a longo prazo. Devemos utilizar os recursos disponíveis hoje, como cultivares moderadamente resistentes, monitoramento do clima para o manejo e aplicação de fungicidas de forma mais eficiente”.

Manejo e Controle Químico

A giberela é uma doença de difícil controle, seja ele genético, químico, cultural ou biológico. As estratégias de controle da giberela devem ser empregadas de maneira integrada, como o uso de cultivares mais resistentes, rotação de culturas, época e escalonamento da semeadura, e o controle químico pela aplicação de fungicidas. Essas estratégias utilizadas isoladamente não apresentam controle satisfatório, principalmente quando ocorre alta pressão de inóculo e condições favoráveis ao desenvolvimento da doença.

Estratégias na pós-colheita

Muitas vezes não foi possível controlar a doença na lavoura, então, o que fazer com os grãos giberelados? Assim que chegam nas unidades de armazenamento, os grãos devem passar pela pré-limpeza, onde são retiradas impurezas com a ajuda de peneiras e ventilação. Esse beneficiamento dos grãos vai ajudar na redução de grãos infectados, especialmente quando o lote apresenta pouca quantidade de grãos desuniformes.

No caso de grande quantidade de grãos infectados, é necessário utilizar a mesa de gravidade (ou mesa densimétrica) que faz a separação por peso da massa de grãos, com grande capacidade de segregar rapidamente os grãos.

Outras técnicas para reduzir os níveis de micotoxinas são equipamentos como peeling e selecionadora óptica. O peeling realiza um “lixamento ou polimento” do grão, removendo as micotoxinas e as impurezas que estão no pericarpo, parte externa do grão. A selecionadora óptica, realiza a retirada do grão fora de padrão do lote por meio de jato de ar, através de leitura óptica. Esses dois equipamentos, eventualmente, são utilizados por moinhos.

Trabalhos realizados pelas instituições de pesquisa mostram que métodos físicos como a limpeza e a mesa de gravidade podem reduzir os níveis de micotoxina DON em até 57% em subprodutos do trigo como farelo e farinha. No peeling, em 30 segundo de polimento é possível reduzir os níveis de DON em 31%.

Durante processos industrias, os níveis de micotoxinas, principalmente DON, também são reduzidos. Na moagem é possível reduzir, em média, 30% da contaminação, enquanto que na panificação os níveis reduzem em 55% (resultados não cumulativos nas diferentes estratégias).

Uma forma inovadora de detecção que está sendo utilizada pela pesquisa é o NIRs (tecnologia de Espectroscopia no Infravermelho Próximo), um equipamento de alta precisão que efetua análises de alimentos através de radiação eletromagnética. O NIR pode identificar os níveis de giberela nos grãos em segundos. O equipamento está sendo calibrado com resultados obtidos em métodos de referência para realizar análises de qualidade tecnológica e de contaminantes, visando segregar o trigo.

Em resumo, a pesquisadora da Embrapa Trigo Casiane Tibola alerta que, após a colheita, deve-se realizar a secagem dos grãos o mais rápido possível, fazer a aeração dos grãos, descartando os de menor peso, que provavelmente estão contaminados, bem como fazer o controle dos insetos que danificam a plantação e facilitam a proliferação dos fungos. “Com o controle adequado nas diferentes etapas da produção a pós-colheita, as micotoxinas são diminuídas a um limite tolerado pelo organismo tanto de humanos quanto de animais, o que torna o consumo de derivados do trigo seguro à saúde”, conclui a pesquisadora.

Prevenção no Campo

Na Cooperativa Agrária, as restrições aos níveis de micotoxinas nos grãos que chegam ao moinho são de conhecimento dos cooperados. A base do acompanhamento é o Radar, um aplicativo desenvolvido pela Fundação Agrária de Pesquisa Agropecuária (FAPA) para uso exclusivo dos cooperados, onde é possível consultar informações climáticas da estação meteorológica mais próxima e fazer o monitoramento de doenças de plantas de forma integrada com pesquisadores e assistência técnica.

Atualmente, são 12 unidades de monitoramento em trigo, onde os técnicos percorrem diariamente as lavouras avaliando a incidência de doenças. “Queremos partir da fase inicial da planta até o espigamento com o menor índice de doenças possível. O controle das manchas precisa acontecer antes do florescimento do trigo. A lesão não pode chegar até a folha bandeira porque debilita a planta e favorece a entrada da giberela”, explica o pesquisador Heraldo Feska. Ele conta que, no passado, estratégias isoladas para controle da giberela não surtiram resultado, então foram chamados os produtores e formadas equipes, de diferentes setores, que atuam na pré-colheita e na pós-colheita.

Com o acompanhamento, a Agrária conseguiu reduzir em 32% os níveis de DON nos grãos que chegam ao moinho. Níveis abaixo de 1.500 ppb já representam 97,8% dos lotes. Como incentivo, o produtor recebe prêmio por tonelada em lotes com DON abaixo de 500 ppb. “Manejo e práticas culturais devem estar alinhadas para reduzir micotoxinas. Não basta só investir no fungicida, é preciso comprometer todos os envolvidos ao longo da safra de trigo”, avalia Heraldo Feska.

Problema

A giberela ou fusariose é uma doença fúngica descrita em trigo na Inglaterra, em 1884, afetando espigas e grãos. Há décadas é relatada como um dos principais problemas em cereais de inverno. Perdas quantitativas e qualitativas são registradas nos cinco continentes, em todas as regiões de clima temperado quente, úmido e semi-úmido, onde se cultiva trigo. Na China e no Japão, existem relatos de até 50% de perdas devidas à giberela em trigo, enquanto na Argentina foram estimadas perdas de 30% na produção. Na Índia, em 1996, estimaram-se perdas no campo de 11 a 20% por giberela. Em vários países, como, México, Paraguai, Austrália, entre outros, também existem relatos de perdas causadas por giberela em trigo. Perdas de expressão econômica têm sido registradas nos Estados Unidos e no Canadá em trigo e em cevada. Apenas em Dakota do Norte, entre 1993 e 1998, estimaram-se perdas de dois bilhões de dólares. Apesar da ausência de levantamentos no Brasil, a giberela é considerada uma das mais severas doenças nas últimas duas décadas, assumindo presença constante nos programas de melhoramento genético do país. Atualmente, ainda, não existem medidas de controle eficazes para giberela constituindo um desafio para a pesquisa mundial.

Diagnóstico

A giberela no Brasil foi diagnosticada na década de 40 no estado do Rio Grande do Sul e vem sendo relatada como epidêmica nos três estados da Região Sul, em anos de elevada precipitação pluvial. A adoção do Sistema Plantio Direto tem sido apontada como uma possível aliada no aumento da intensidade da doença, uma vez que esse sistema conservacionista de solo favorece a reprodução do patógeno. A inexistência de táticas de controle eficientes isoladas como cultivares resistentes, controle químico, rotação de culturas também tem contribuído para potencializar o aumento de giberela e, consequentemente, os prejuízos aos agricultores e consumidores.

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